Uma homenagem serena

William Campos da Cruz
2 min readJul 26, 2020

--

Pouco a pouco, vou aprendendo a lidar com a ausência de meu pai. Já contei aqui a última conversa que tive com ele e como suas palavras me serviram de consolo antecipado. Outro consolo muito significativo que recebi veio de uma inscrição na parede do necrotério. O caso é o seguinte:

Durante 39 anos, meu pai foi frequentador assíduo e colaborador ativo de Alcoólicos Anônimos. O fundo do poço de meu pai se deu antes de eu nascer; conheço as histórias do sofrimento causado pelo abuso do álcool apenas de segunda mão, narradas por minha mãe ou por meus irmãos mais velhos. O que posso dizer como testemunho direto é a gratidão que meu pai tinha pelo AA, gratidão que se expressava de maneira muito concreta por meio de sua dedicação aos trabalhos da irmandade.

Para quem não sabe, todas as reuniões de AA se encerram com a chamada “Oração da Serenidade”: “Concedei-nos, Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que não podemos modificar; coragem para modificar aquelas que podemos e sabedoria para distinguir umas das outras”. Meu pai repetiu essa oração diariamente por quase quarenta anos. Posso dizer que as palavras dessa oração pautaram o modo como ele viveu.

No dia de seu falecimento, coube a mim ir ao hospital fazer o reconhecimento do corpo. Entre o elevador e o necrotério, havia um longo corredor, que atravessei tomado por um pensamento obsessivo: “Tomara que não seja ele, tomara que tenha havido algum erro, tomara que eu chegue lá e descubra que é o corpo errado e que, portanto, meu pai deve ser procurado entre os vivos, não entre os mortos”.

Cheguei à sala onde ficavam os corpos e fui conduzido pelo rapaz da funerária que me acompanhava. Com muito respeito, abriu a mortalha e perguntou se aquele era mesmo “o meu finado”. Respirei fundo e respondi que sim. Ele fez menção de fechar a mortalha, e lhe pedi mais quarenta segundos para a despedida. Nessa hora, o choro irrompeu ruidoso. A Monica ouviu o barulho, veio até mim, me abraçou e sugeriu que eu saísse da sala.

Ao sair, voltei-me ainda uma vez na direção da sala onde ele se encontrava. Somente então vi um pequeno quadro pendurado na parede ao lado da porta. Nele estava escrito:

ORAÇÃO DA SERENIDADE

Concedei-nos, Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que não podemos mudar; coragem para mudar aquelas que podemos e sabedoria para distinguirmos umas das outras.

A oração que o acompanhou em vida se fez presente também em sua morte, agora pronunciada por um filho aflito, como um pedido de consolo diante de mais uma dessas coisas que não podemos mudar. Deus ouviu.

--

--