Gramática da poesia e poesia da gramática

William Campos da Cruz
5 min readMar 22, 2020

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George Steiner foi a minha companhia na manhã ensolarada deste domingo de confinamento. O ensaio “O leitor incomum”, presente em Nenhuma paixão desperdiçada, não poderia ser mais propício a um momento que nos faz refletir sobre o modo como vivemos. Steiner analisa longamente o quadro “Le philosophe lisant”, de Jean Siméon Chardin, e vê ali o que chamou de “a arte clássica da leitura” — uma leitura atenta, meditada, responsiva, capaz de reconhecer alusões e referências à tradição literária precedente.

De te fabula narratur. Steiner começa a descrever o quadro e, curioso que sou, busquei a imagem na internet. Olhei-a rapidamente e retomei a leitura. O autor fala da dispersão do leitor moderno em oposição ao “philosophe lisant”, para quem a leitura é um ato cerimonial. Não tive nenhum sintoma de gripe, mas reconheci em mim todos os sintomas deste leitor disperso. A começar do fato de que, a cada elemento comentado no texto, eu precisava voltar à imagem, porque simplesmente não os tinha visto!

A análise do quadro é, ao mesmo tempo, exemplo de uma atitude diante do mundo. Steiner atenta para os trajes do philosophe; em seguida, vê o livro, a ampulheta, os discos de metal, a pena, as cortinas. O vagar da análise é também o vagar da observação meditada. A cada parágrafo, Steiner me ensinava a enxergar, a refletir, a compreender que, se não nos detemos a nada, simplesmente desperdiçamos as maravilhas do engenho humano.

Uma oração, em particular, explodiu em minha cabeça e é a razão pela qual comecei a escrever este texto. Ao falar de como imagina ser uma “escola de leitura criativa”, diz o autor:

Precisaríamos aprender a decompor as frases em seus elementos constituintes e analisar gramaticalmente nosso texto, pois, como Roman Jakobson já nos ensinou, não terá acesso à gramática da poesia, aos nervos e aos tendões do poema, aquele que não enxergar a poesia da gramática. Teríamos que aprender novamente sobre métrica, sobre escanção do verso, saberes tão corriqueiros para qualquer menino de escola da era vitoriana. Precisaríamos fazer isso não por pedantismo, mas pelo fato irrefutável de que em toda poesia — e em uma boa parte da prosa — a métrica é a música que controla o pensamento e a emoção.

Um exemplo de como a arte gramatical pode ajudar-nos a ver beleza da poesia encontra-se no poema O romper d’alva, de Gonçalves Dias. Vejamos as estrofes iniciais:

Do vento o rijo sopro as mansas ondas

Varreu do imenso pego, — e o mar rugindo

às nuvens se elevou com fúria insana;

Enoveladas vagas se arrojaram

Ao céu co’a branca espuma!

Raivando em vão se encontram soluçando

Na base d’erma rocha descalvada;

Em vão de fúrias crescem, que se quebra

A força enorme do impotente orgulho

Na rocha altiva ou na arenosa praia. _

Da tormenta o furor lhe acende os brios,

Da tormenta o furor lh’enfreia as iras,

Que em teimosos gemidos se descerram,

Da quieta noite despertando os ecos

Além, no vale humilde, onde não chega

Seu sanhudo gemer, que o dia abafa.

Mas a brisa sussurrando

A face do céu varreu,

Tristes nuvens espalhando,

Que a noite em ondas verteu.

Quando estudamos fonética, vemos que as consoantes são classificadas conforme o modo de articulação, o ponto de articulação e o papel das cordas vocais. Nada poderia ser mais simples que reconhecer o papel das cordas vocais. Ponha os dedos no pescoço, como quem fosse conferir a frequência cardíaca. Pronuncie de maneira prolongada o som da letra efe. Fffffff. Em seguida, faça o mesmo com o som da letra . Vvvvvvvvvv. Perceberam? No primeiro caso, as cordas vocais não vibram. No segundo, vibram. Eis a diferença entre uma consoante surda e uma sonora.

Agora, volte ao texto acima e atente para os sons dominantes nas duas estrofes. Gonçalves Dias conseguiu o prodígio de, por meio dos sons empregados, reforçar o tema de que ele trata. Na primeira estrofe, que fala da tormenta, prevalecem os fonemas sonoros, o que, em certo sentido, reproduz o ruído do mar tempestuoso. Na estrofe seguinte, em que ele fala da brisa e da bonança que se segue ao amanhecer, predominam os fonemas surdos. E, mais do que isso, o som fricativo surdo imita o próprio som do sopro da brisa: “a brisa sussurando / a face do céu varreu”.

Volte ao texto uma vez mais e, agora, atente para a estrutura sintática. A mesma oposição que se dá no plano fonético se mostra também no plano sintático. A sintaxe da primeira estrofe é mais caudalosa, cheia de inversões, que exigem do leitor uma atenção especial para perceber o que está acontecendo de fato. Puséssemos os primeiros versos em ordem direta, teríamos: “o sopro rijo (duro, forte, brutal) do vento varreu as mansas ondas do imenso pego (pélago, mar profundo) — e o mar, rugindo, com fúria insana, elevou-se às nuvens”. Imaginem a cena do mar tempestuoso, com toda a agitação, com correntezas em direções opostas; agora, releiam o texto e vejam se isto não se dá também no plano sintático, isto é, na disposição da ordem das palavras no poema.

Contraste essa estrutura com a da segunda estrofe. Tudo está claro, direto, límpido, tranquilo. Até há uma inversão, mas muito mais simples que as que se mostram na estrofe anterior: “Mas a brisa, sussurrando, varreu a face do céu, espalhando [as] tristes nuvens que a noite verteu [transformou] em ondas”.

Ou seja, conhecer a classificação das consoantes não é vão; e a famigerada análise sintática não é instrumento de tortura da adolescentes, mas um verdadeiro instrumento de análise de textos que nos capacita a compreender e fruir do engenho humano manifesto na arte literária.

Feliz o dia em que Steiner citou Jakobson. Assim como a poesia tem a sua gramática, a gramática tem a sua poesia.

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