Em gramática, tudo converge para a compreensão e a fruição dos textos

William Campos da Cruz
4 min readDec 29, 2020

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O filósofo francês Jacques Maritain disse certa vez que um dos erros mais comuns da educação moderna é o desprezo dos fins a que ela se destina. O produto da educação não é um caderno cheio de lições, mas uma pessoa dotada de conhecimentos, de capacidade julgadora e de virtudes morais.* No mínimo, a educação transforma alguém que não sabe em alguém que sabe.

Essa perspectiva me levou a refletir a respeito do ensino de língua portuguesa e, particularmente, da gramática. Todo professor já ouviu (se é que ele mesmo não formulou) a pergunta: “Para que preciso saber disso?” ou “O que vou fazer com isso?”.

À luz do que ensina Maritain, gostaria de propor uma inversão da pergunta. A questão não é o que você fará com a gramática, mas o que a gramática fará com você. Entre outras coisas, o conhecimento da gramática forja em nós o hábito do pensamento ordenado. Aprendemos que a língua tem seus próprios mecanismos de funcionamento e estes têm grande influência sobre o modo como pensamos, sentimos e exprimimos nossa vida interior.

Não pensem, no entanto, que não há espaço para a liberdade. O que acontece é o exato oposto: é libertador, por exemplo, saber que podemos optar por uma oração adverbial concessiva ou por uma coordenada adversativa conforme a ênfase escolhida ou a estratégia argumentativa adotada (Neymar é bom jogador, mas indisciplinado / Embora seja indisciplinado, Neymar é bom jogador). Também podemos afirmar algo com toda a veemência da voz ativa ou escamotear o agente por meio da voz passiva. Podemos deslocar o adjunto adverbial de acordo com a ênfase que queiramos dar às circunstâncias da ação verbal.

Se pensarmos no plano morfológico, é muito útil perceber como o sistema pronominal (com suas anáforas [retomadas] e catáforas [remissões]) e as conjunções constituem os principais recursos de que dispomos para conferir coesão ao texto. Reconhecer o caráter central, nuclear, de verbos e substantivos e o caráter periférico de adjetivos e advérbios potencializa a nossa capacidade expressiva. No mínimo nos ajudam a tornar consciente o que era apenas intuitivo.

Levando adiante a reflexão, gostaria de propor uma segunda inversão. Em vez de partirmos das definições e da terminologia técnica para só então observarmos os fenômenos da língua, creio que é mais conveniente observar os fenômenos da língua para, aí sim, buscarmos as descrições e explicações já sistematizadas pelos estudiosos. Pensem numa criança no zoológico. Ela vê uma ema, acha o bicho esquisito e pergunta: “O que é isso?”. Dizemos “É uma ema”, e a criança se dá por satisfeita. Não sei que imagem mental ela construiria com base apenas numa descrição da ave.

Façamos um breve exercício.

Leiam as palavras a seguir e separem-nas em três grupos: cantar, bonito, livro, mesa, feliz, fugir.

Pronto?

Avancemos!

Mesmo que não saiba nada a respeito das classes de palavras, é provável que você tenha reconhecido certas características comuns que permitem que as palavras sejam postas num mesmo grupo (1. cantar, fugir; 2. bonito, feliz; 3. livro, mesa). Para quem observou esses traços comuns, os nomes e as descrições das classes de palavras começam a fazer sentido; para quem não viu nada, a descrição e a terminologia serão signos vazios de significado — ou pior, gerarão imagens mentais mais esquisitas que uma ema de verdade.

Para terminar, porque já me estendi demais, é importante lembrar que, em gramática, tudo converge para o texto. Fazemos exercícios de análise sintática de orações simples para adquirir a capacidade de rastrear relações sintáticas em textos mais complexos (vocês certamente já ouviram falar de hipérbatos, tão comuns na poesia). Aprendemos a separar sílabas, entre outras razões, porque este é um requisito para aprendermos escansão poética. Quando sabemos identificar a sílaba tônica das palavras, também podemos reconhecer o ritmo dos versos de um poema. Os exemplos poderiam se multiplicar.

O principal é perceber que, no fim das contas, o estudo da gramática nos fornece ferramentas muito úteis para aprofundar nossa compreensão e fruição dos textos — repito: compreensão e fruição. Se os estudos gramaticais transformarem vocês em pessoas capazes de reconhecer e de deleitarem-se com palavras bem selecionadas e bem ordenadas, eles terão cumprido seu propósito. É ou não é um fim mais elevado do que simplesmente tornar-se um fiscal da língua alheia?

* Jacques Maritain, Rumos da Educação (Rio de Janeiro: Agir, 1959), p. 16 e 27.

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WILLIAM CRUZ

Licenciado em Letras, tradutor, editor e revisor de textos. Mantém o perfil @gramaticanavida no Instagram.

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