A imaginação fantástica

William Campos da Cruz
11 min readNov 3, 2023

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George Macdonald

O fato de não termos em inglês [nem em português] nenhuma palavra correspondente ao alemão Märchen obriga-nos a usar a expressão “conto de fadas”, mesmo que o conto não tenha nada a ver com nenhum tipo de fada. Entretanto, o antigo uso da palavra fada, ao menos por Spenser,[1] poder ser mencionado quando a necessidade exigir uma justificativa ou desculpa.

Se me perguntassem “O que é um conto de fadas?”, responderia: “Leia Ondina:[2] eis um conto de fadas; depois, leia isso e aquilo também, e verá o que é um conto de fadas”. Se, além disso, me pedissem para descrever o conto de fadas ou para definir o que ele é, eu responderia que é como pensar em descrever um rosto humano abstrato ou afirmar o que deve constituir um ser humano. Um conto de fadas é só um conto de fadas, assim como um rosto é só um rosto; e de todos os contos de fadas que conheço, considero Ondina o mais lindo.

Entretanto, muitos homens, que jamais tentariam definir o que o homem é, podem arriscar-se a dizer algo a respeito do que o homem deve ser. Ainda assim, não me arriscarei aqui com relação ao conto de fadas, pois minha longa obra desse gênero não pode senão deficientemente exemplificar ou ilustrar meu julgamento hoje mais maduro. Direi apenas algumas coisas úteis à leitura, com a atitude mental correta, de tais contos de fadas como gostaria de escrever ou me interessaria em ler.

Alguns pensadores sentir-se-iam tremendamente tolhidos se só pudessem usar livremente as formas que existem na natureza ou se não pudessem inventar nada senão conforme as leis do mundo dos sentidos; no entanto, não se deve imaginar, por esse motivo, que desejam escapar da região da lei. Nada que não tenha lei pode mostrar a menor razão de existir ou, na melhor das hipóteses, ter mais do que uma aparência de vida.

O mundo natural tem suas leis, e homem nenhum deve intrometer-se com elas em seu modo de apresentação mais do que em seu modo de uso; entretanto, eles mesmos podem sugerir leis de outros tipos, e o homem pode, se lhe aprouver, inventar um pequeno mundo particular, com suas próprias leis; pois há nele o fascínio de invocar novas formas — que talvez seja o mais próximo que se pode chegar da criação. Quando tais formas são encarnações novas de verdades velhas, chamamo-las de produtos da Imaginação; quando são meras invenções, por mais adoráveis que sejam, eu as chamaria de obra da Fantasia; em todo caso, a Lei esteve ativamente em ação.

Uma vez inventado seu mundo, a lei suprema que sobe ao palco é a de que deve haver harmonia entre as leis pelas quais o novo mundo passou a existir; e, no processo dessa criação, o inventor deve ater-se a essas leis. No momento em que se esquece de uma delas, ele torna a história, por seus próprios postulados, inverossímil. Para sermos capazes de viver por um instante num mundo imaginado, temos de ver obedecidas as leis de sua existência. Uma vez quebradas essas leis, caímos fora dali. A imaginação em nós, cujo exercício é essencial à mais provisória sujeição à imaginação do outro, com o desaparecimento da Lei, imediatamente para de agir. Pense nas criaturas graciosas das regiões encantadas da terra das fadas falando cockney ou gascão! Ainda que tenha tido um início adorável, o conto não cairia de uma vez no nível do burlesco — a menos digna de todas as formas de literatura? As invenções de um homem podem ser estúpidas ou inteligentes, mas se ele não se atém às leis delas, ou se faz uma lei conflitar com outra, contradiz a si mesmo como inventor; não é um artista. Não manuseia adequadamente seus instrumentos ou os afina em tons diferentes. A mente do homem é produto da Lei viva; ele pensa pela lei, habita em meio à lei, extrai da lei seu crescimento; só com a lei, portanto, pode-se obter algum resultado. Ideias desconjuntadas e sem harmonia ocorrerão ao homem, mas, se tentar usar uma delas, a obra se tornará obtusa, e ele a abandonará por simples falta de interesse. A Lei é o único solo em que a beleza pode crescer; a beleza é o único traje que a Verdade pode vestir; você pode, se quiser, chamar de Imaginação o alfaiate que corta as vestes para que caibam na Verdade, e de Fantasia o empregado que costura as peças ou talvez, no máximo, borda as casas dos botões. Obedecendo à lei, o artífice trabalha como criador; sem obedecer à lei, é como um tolo que amontoa uma pilha de pedras e diz que ergueu uma igreja.

No mundo moral é diferente: ali, um homem pode vestir novas formas, e para isso emprega sua imaginação livremente, mas não pode inventar nada. Não pode, por motivo algum, virar as leis de cabeça para baixo. Não deve intrometer-se nas relações de almas vivas. As leis do espírito do homem devem vigorar, seja neste mundo, seja em qualquer outro que ele invente. Não é ofensivo imaginar um mundo em que tudo repele — em vez de atrair — as coisas a seu redor; mas seria perverso escrever um conto que considerasse bom um homem que sempre pratica o mal ou que chamasse de mau um homem que sempre faz o bem: a própria noção é absolutamente anárquica. Nas coisas físicas, o homem pode inventar; nas coisas morais, deve obedecer — e levar consigo suas leis também ao mundo que inventou.

“Você escreve como se um conto de fadas fosse algo importante: ele deve ter significado?”

Não pode deixar de ter algum significado; se tiver proporção e harmonia, tem vitalidade; e vitalidade é verdade. A beleza pode ser mais evidente que a verdade nele, mas, sem a verdade, a beleza não pode existir, e o conto de fadas não proporcionaria nenhum deleite. Todos, entretanto, que sentem a história, lerão o significado segundo sua própria natureza e desenvolvimento: este homem encontrará um significado, aquele encontrará outro.

“Se é assim, como posso ter certeza de que não estou projetando meu próprio significado no texto, mas extraindo o que você lhe atribuiu?”

Por que você precisa ter tanta certeza? Pode ser melhor que você projete seu próprio significado. Pode ser que esta seja uma operação de seu intelecto superior à simples extração do meu significado pretendido: seu significado pode ser superior ao meu.

“Imagine que meu filho me pergunte o que é um conto de fadas. O que devo lhe dizer?”

Se você não sabe o que o conto significa, o que é mais fácil dizer do que isso? Se você vê um significado, então é este que você deve apresentar-lhe. Uma obra de arte genuína deve significar muitas coisas; quanto mais verdadeira a arte, mais coisas significará. Se meu desenho, por outro lado, está tão longe de ser uma obra de arte que precisa de uma legenda ISTO É UM CAVALO, o que importa se nem você nem seu filho souberem o que ela significa? Não há tanto um significado a comunicar, mas um significado a despertar. Se nem sequer desperta o interesse, deixe-o de lado. Um significado pode estar ali, mas não é para você. Se, de novo, você não reconhece um cavalo quando o vê, a legenda não servirá de muita coisa. Seja como for, o trabalho do pintor não é ensinar zoologia.

Mas, na verdade, é improvável que seus filhos lhe perguntem acerca do significado. Eles encontram o que são capazes de encontrar, e mais do que isso seria demasiado. De minha parte, não escrevo para crianças, mas para os que são como crianças, tenham cinco, cinquenta ou setenta e cinco anos.

Um conto de fadas não é uma alegoria. Pode haver alegoria nele, mas não é uma alegoria. É necessário ser um artista de verdade para, de algum modo, produzir uma alegoria estrita que não seja um enfado ao espírito. Uma alegoria há de ser uma obra-prima ou um pântano.[3]

Um conto de fadas, como uma borboleta ou uma abelha, beneficia-se a si mesmo de todos os lados, saboreia todas as flores proveitosas e não estraga nenhuma. O verdadeiro conto de fadas é, para mim, como uma sonata. Todos sabemos que uma sonata significa alguma coisa; onde há a capacidade de falar com a incerteza adequada, e de escolher uma metáfora suficientemente abrangente, uma mente pode se aproximar de outra na interpretação de uma sonata, tendo como resultado uma consciência mais ou menos satisfeita de afinidade. No entanto, se dois ou três homens sentaram-se para escrever o que a sonata significava para si, que aproximação de uma ideia definida resultaria? Bem pouca — e ainda seria mais do que o necessário. Perceberíamos que a sonata suscitou sentimentos semelhantes, senão idênticos, mas provavelmente nenhum pensamento em comum. A sonata, portanto, fracassou? Acaso ela havia tentado transmitir, ou deveríamos esperar que comunicasse, algo definido, algo reconhecível conceitualmente?

“Mas palavras não são música; as palavras, no mínimo, pretendem e prestam-se a carregar um significado preciso!”

É muito raro, na verdade, que carreguem o significado exato pretendido por qualquer usuário delas! E, se podem ser usadas assim para comunicar um significado definido, não se segue que não devam jamais carregar nada além disso. As palavras são coisas vivas que podem ser empregadas de modos diversos para fins diversos. Podem comunicar um fato científico ou lançar sobre o coração de uma mãe uma sombra do sonho do filho. São coisas a serem reunidas como as peças de um mapa fragmentado, ou para serem organizadas como as notas numa partitura. Nelas a música não vale de nada? Esta dificilmente pode ajudar na precisão de um significado: há de ser, portanto, desconsiderada? Têm duração, extensão e contorno: será que não têm nada a ver com profundidade? Têm apenas de descrever, e nunca impressionar? Ninguém tem o direito de usá-las, mas apenas de defini-las? A causa das lágrimas de uma criança pode ser totalmente indefinível: a mãe, por isso, não tem nenhum antídoto a essa tristeza incerta? O que não tem contorno definido pode ser forte nas cores. Um conto de fadas, uma sonata, uma ameaça de tempestade, uma noite sem limites, tudo isso o pega e o arrebata: você começa a lutar com essas coisas e pergunta de onde vem este poder sobre você e para onde o estão levando? A lei de cada uma dessas coisas está na mente de seu compositor; essa lei faz um homem sentir-se de um jeito, e outro sentir-se de outro. A um, a sonata é um mundo de perfume e beleza; a outro, de conforto e doçura. A um, o encontro das nuvens é uma dança selvagem, com um terror em seu coração; a outro, uma marcha majestosa das hostes celestiais, com a Verdade em seu centro apontando seu curso, mas ainda retendo a voz. As maiores forças encontram-se na região do incompreendido.

E vou mais longe. — A melhor coisa que você pode fazer por seu próximo, depois de despertar-lhe a consciência, não é dar-lhes coisas em que pensar, mas despertar as coisas que já estão nele; ou seja, fazê-lo pensar as coisas por si mesmo. O melhor que a Natureza faz por nós é despertar em nós aqueles estados de espírito em que surgem os pensamentos da maior importância. Há algum aspecto da Natureza que desperta um único pensamento? Ela nos sugere apenas uma coisa específica? Ela faz dois homens no mesmo lugar ao mesmo tempo pensarem a mesma coisa? Ela é um fracasso porque não é definida? Não quer dizer nada o fato de que ela suscita algo mais profundo que o entendimento — o poder que está subjacente aos pensamentos? Não é ela que põe em ação o sentimento e, portanto, também o pensamento? Seria melhor que ela fizesse isso de uma única maneira e não de muitas maneiras diversas? A natureza engendra os estados de espírito e provoca o pensamento: assim deve ser a sonata, assim também deve ser o conto de fadas.

“Mas um homem pode, então, imaginar o que quiser na obra que você escreveu, algo que jamais foi sua intenção!”

Não o que quiser, mas o que puder. Se não for sincero, um homem pode tirar o mal até do melhor; não precisamos nos importar com o modo como ele trata uma obra de arte! Se for sincero, um homem imaginará coisas verdadeiras; que importa se eu as tinha em mente ou não? Elas estão lá, a despeito do fato de que não fui eu que as pus ali! Uma diferença entre a obra de Deus e a do homem é que, enquanto a obra de Deus não pode significar mais do que Ele pretendia, a obra do homem deve significar mais do que ele pretendia. Pois, em tudo que Deus fez, há camadas e camadas de significado ascendente; ele também expressa o mesmo pensamento em tipos cada vez mais altos desse pensamento: são as coisas de Deus, seus pensamentos encarnados, que o homem tem de usar, modificadas e adaptadas a seus próprios propósitos, para a expressão de seus próprios pensamentos; portanto, ele não pode evitar que suas palavras e figuras, em combinações que ele mesmo não previra, caiam na mente de outro homem, de modo que muitos são os pensamentos aliados a todos os outros pensamentos, e muitas são as relações envolvidas em cada figura e muitos são os fatos sugeridos em cada símbolo. Um homem pode muito bem descobrir por si mesmo a verdade naquilo que escreveu; pois ele está lidando o tempo todo com coisas que vieram de pensamentos além dos seus próprios.

“Mas decerto você explicará sua ideia a alguém que lhe pergunta, não?”

Repito: se não sou capaz de desenhar um cavalo, não escreverei ISTO É UM CAVALO embaixo daquilo que tolamente pretendia que fosse um. Qualquer chave para uma obra de imaginação seria tão absurda quanto isso, ou quase. O conto está ali não para ocultar, mas para mostrar: se não mostra nada na janela, não abra a porta para ele; deixe-o lá fora no frio. Pedir-me que explique é o mesmo que dizer: “Rosas! Ferva-as ou não as receberemos!” Meus contos podem não ser rosas, mas não os ferverei. Enquanto considerar que meu cachorro é capaz de latir, não me porei a latir em lugar dele.

Se tem como objetivo a persuasão pela lógica, um escritor não deve esquivar-se das dores lógicas, não simplesmente para ser entendido, mas para evitar ser mal entendido; quando o objetivo é comover pela sugestão, estimular a imaginação, então deixe-o atacar a alma de seu leitor como o vento ataca uma harpa eólica. Se houver música em meu leitor, vou despertá-la de bom grado. Que meu conto de fadas procure um vagalume que ora reluz, ora se apaga, mas pode reluzir de novo. Preso numa mão que não ama seres desse tipo, vai se tornar uma coisa feia e insignificante, que não pode nem reluzir nem voar.

A melhor coisa que podemos fazer com a música, imagino, não é dirigir a ela as forças de nosso intelecto, mas acalmar-nos e deixá-la trabalhar naquela parte de nós por cuja causa ela existe. Estragamos incontáveis coisas preciosas por ganância intelectual. Quem quiser ser um homem, e não uma criança, deve — não consegue evitar — tornar-se um homenzinho, isto é, um anão. No entanto, não precisará de consolo, pois seguramente pensará que, na verdade, é uma criatura bem grande.

Se alguma melodia de minha “música quebrada” fizer brilhar os olhos de uma criança, ou encher os olhos de uma mãe, meu trabalho não terá sido em vão.

FIM.

[1] Edmund Spenser (1552–1599) foi um poeta inglês, cuja obra mais conhecida é o poema épico The Faerie Queene (1589–1596).

[2] Obra de Friedrich De La Motte-Fouqué publicada em 1811. Há edição brasileira: Ondina: Uma história de fadas da mitologia germânica. Trad. Karin Volobuef. São Paulo: Landy, 2005.

[3] No original, a Mastery or a Moorditch. Provável alusão ao pântano citado na peça Henrique IV, de Shakespeare (Ato I, Cena 2).

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