A fruição que advém do entendimento

William Campos da Cruz
5 min readDec 29, 2020

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Em meu texto anterior, falei de como, em gramática, tudo converge para a compreensão e para a fruição dos textos. Gostaria, agora, de aprofundar um pouco mais a ideia dizendo que a fruição advém do entendimento — e os aspectos formais do texto muitas vezes reforçam o que está sendo dito no plano do sentido. Espero que isso fique claro adiante.

O crítico de arte holandês Hans Rookmaaker, em Filosofia e Estética, diz:

Vemos o que conhecemos. Isso implica que não vemos o que não conhecemos. Faça um passeio por um pomar acompanhado de um botânico. Você vê árvores; ele, entretanto, vê esta e aquela espécie, e surpreende-se porque determinada árvore difere das outras de sua espécie; observa os insetos movimentando-se nas árvores. Ele pode mostrar e ensinar-nos a ver, embora isto nem sempre seja fácil e leve tempo até que sejamos realmente capazes de ver as coisas que são óbvias aos iniciados. Toda a educação consiste em abrir nossos olhos e ensinar-nos a ver.*

A ilustração de Rookmaaker é poderosa. Não é que a singularidade de cada árvore ou a variedade de insetos não estivesse ao alcance dos olhos de um observador leigo; estavam ali, mas eram compreendidas como massa amorfa, sem contornos claros. Para que haja pleno deleite do que temos diante de nós, é necessário vencer esta etapa inicial e dar mais um passo. Observem que eu disse pleno deleite — o que quer dizer que pode haver algum deleite parcial, mesmo ao olhar menos instruído.

Em grande medida, um professor de língua portuguesa deve exercer o papel do botânico da ilustração acima e ensinar-nos a ver os aspectos menos evidentes do texto. Um exemplo pode deixar claro o que quero dizer.

No poema “Pescaria”,** publicado em Ou isto ou aquilo, Cecília Meireles brinca com a sonoridade das palavras e com a extensão dos versos de maneira absolutamente extraordinária. Diz o poema:

(1) Cesto de peixes no chão.
(2) Cheio de peixes, o mar.
(3) Cheiro de peixe pelo ar.
(4) E peixes no chão.

(5) Chora a espuma pela areia,
(6) Na maré cheia.

(7) As mãos do mar vêm e vão,
(8) As mãos do mar pela areia
(9) Onde os peixes estão.

(10) As mãos do mar vêm e vão,
(11) Em vão.
(12) Não chegarão
(13) aos peixes no chão.

(14) Por isso chora, na areia,
(15) A espuma da maré cheia.

A muitos pode parecer um poema simples, que lemos distraidamente e seguimos para a página seguinte. A graça começa quando detemos o olhar (e o ouvido) e damos uma segunda chance ao texto. Neste momento, começamos a perceber que certos fonemas se repetem ao longo de todo o poema: peiXe, CHeio, CHeiro, CHão, CHora, CHeia; Vem e Vão. Há um predomínio evidente do fonema /ʃ/,*** e alguém pode estranhar a menção ao fonema /v/. O que esses fonemas têm em comum? Ambos são fonemas fricativos, cuja articulação se dá por meio de um estreitamento da cavidade bucal, fazendo com que o ar passe por uma fenda apertada.

[Quando estudamos fonologia, aprendemos que consoantes são os fonemas produzidos por meio de uma obstrução à passagem do ar. Conforme o tipo de obstrução, tecnicamente chamado de modo de articulação, as consoantes podem ser oclusivas (obstrução total), fricativas (obstrução parcial), laterais (a língua toca em algum ponto da boca e o ar “vaza” pelos lados) ou vibrantes (o som é produzido por uma vibração da língua).]

Agora, pense em sua experiência pessoal. Você já pôs a orelha numa concha a fim de “ouvir” o barulho do mar? Se tivesse que imitar com a boca esse marulhar, como faria? Muito provavelmente, você também se valeria de sons similares a estes fonemas fricativos. Agora, volte ao texto. A cada verso, com o simples emprego dos fonemas fricativos, Cecília Meireles nos faz ouvir o próprio mar. No plano do sentido, temos uma cena praieira; a expressividade fonética reforça este sentido e como que nos transporta para o lugar em que a cena se dá. Perceberam?

Há mais. Observe agora como se repete o verso “As mãos do mar vêm e vão”. Por quê? Porque, mais uma vez, a autora está usando o plano da forma para reforçar o sentido. Ao falar da subida da maré, que se dá de maneira intermitente, ela usa a repetição do verso para apontar esse caráter reiterativo do movimento das ondas.

Insistindo na leitura, podemos enxergar ainda mais coisas. Revisitemos o trecho:

(7) As mãos do mar vêm e vão,
(8) As mãos do mar pela areia
(9) Onde os peixes estão.

(10) As mãos do mar vêm e vão,
(11) Em vão.
(12) Não chegarão
(13) aos peixes no chão.

O verso “As mãos do mar vêm e vão” contém 7 sílabas e termina numa sílaba tônica; o verso imediatamente posterior, embora tenha a mesma quantidade de sílabas poéticas, termina numa sílaba átona; o verso “onde os peixes estão” tem apenas 6 sílabas. Mais uma vez a forma reforça o sentido: no verso 7, temos o avanço da onda; nos versos 8 e 9, temos o recuo. Na estrofe seguinte, o efeito fica ainda mais evidente, até mesmo do ponto de vista gráfico. A disposição do texto na página mostra o avanço e o recuo do mar. A extensão dos versos 10 a 13 realçam o fato de os peixes estarem fora do alcance das “mãos do mar”. É como se o mar estendesse os braços, mas ainda assim fosse insuficiente. Cecília diz isso explicitamente, por meio das palavras, mas sugere a mesma ideia com a sua métrica.

Compare agora os versos 14–15 com os versos 5–6. Embora não seja propriamente uma repetição, há uma retomada do que foi dito anteriormente. De novo, é preciso evocar a nossa experiência na praia. As ondas no mar deixam sua marca de espuma na areia. A retomada dos versos são uma forma de fazer a espuma marcar a areia e também o poema.

***

Um de meus maiores esforços nos últimos anos tem sido falar de gramática não como uma disciplina com fim em si mesma, mas como instrumento para leitura e análise de textos. Um botânico precisa estudar a anatomia das plantas para que, diante do pomar, veja in loco cada detalhe e cada variação que se apresenta na vegetação real. Um leitor precisa de boas noções de gramática para que estas lhe sirvam de instrumento para lidar com textos.

Você imaginava que conhecer os diferentes modos de articulação das consoantes, a posição da sílaba tônica e a contagem de sílabas poderia disciplinar nossa atenção enquanto lemos? Percebeu como nem toda repetição é viciosa e precisa ser evitada a todo custo? Viu como até mesmo a distribuição do texto na página pode ter um efeito significativo? Posso presumir que, a partir de agora, você dispõe de mais recursos para analisar os textos e que isso, em última análise, redundará em mais fruição, em mais deleite, em mais prazer na leitura?

* Hans R. Rookmaaker, “Filosofia e Estética”. Trad. William Campos da Cruz. Brasília: Monergismo, 2018, p. 204–05.
** Cecília Meireles, “Ou isto ou aquilo”. São Paulo: Global, 2012, p. 8.
*** O símbolo /ʃ/ é a transcrição fonética do som representado pela letra x ou ch, como em Xícara ou CHá.

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WILLIAM CRUZ

Licenciado em Letras, tradutor, editor e revisor de textos. Mantém o perfil @gramaticanavida no Instagram.

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